O STF, O MARCO CIVIL DA INTERNET E O SILÊNCIO CÚMPLICE DOS “LACRADORES”
Por Ricardo Vianna Hoffmann
Em 26 de junho de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão histórica ao reconhecer a inconstitucionalidade parcial e progressiva do artigo 19 da Lei nº 12.965/2014, o Marco Civil da Internet.
Ao julgar os Temas 987 e 533 da Repercussão Geral (REs 1.037.396 e 1.057.258), o STF enfrentou um dos principais dilemas jurídicos da era digital: como equilibrar a liberdade de expressão e a responsabilidade das plataformas frente à proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.
O artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 estabelece o seguinte:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet determinava que plataformas como redes sociais, sites de vídeos e mecanismos de busca só poderiam ser responsabilizadas por conteúdos publicados por terceiros caso houvesse uma ordem judicial expressa. Em outras palavras, mesmo que o conteúdo fosse claramente ofensivo, discriminatório ou criminoso, cabia à vítima procurar a Justiça — sendo que, apenas após decisão do Poder Judiciário, surgia para o provedor o dever legal de remoção. A responsabilização civil do provedor somente se operava em caso de inércia ou descumprimento dessa ordem judicial.
Portanto, o dispositivo visava proteger a liberdade de expressão e impedir a censura, o que, à época da promulgação da lei (2014), fazia sentido e estava em conformidade com a Constituição Federal, que assegura, em seu artigo 5º, inciso IV, a livre manifestação do pensamento; e, no inciso IX, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, com reforço do disposto no artigo 220, caput e §§ 1º e 2º, garantindo que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, vedando expressamente a censura de natureza política, ideológica e artística.
Essa proteção à liberdade de expressão era coerente com o cenário digital em formação, ainda pautado por ideais democráticos e pela promessa de pluralismo informativo. No entanto, o ambiente virtual transformou-se profundamente, dando lugar a redes automatizadas (bots), à disseminação em massa de desinformação, a discursos de ódio e a ataques coordenados à democracia, elementos que se tornaram não apenas recorrentes, mas, em muitos casos, também lucrativos para as plataformas digitais. Diante dessa nova realidade, o modelo anterior de responsabilização mostrou-se insuficiente para conter os danos sociais provocados pela circulação irresponsável, massiva e, por vezes, organizada de conteúdos ilícitos.
O resultado disso é um ambiente digital em que a remoção de discursos de ódio ou de desinformação depende da iniciativa individual da vítima e da morosidade do sistema judiciário, deixando lacunas perigosas para a propagação de violações de direitos.
Reconhecendo a insuficiência da regra atual para proteger bens jurídicos constitucionais, o STF declarou que o artigo 19 não pode ser aplicado de forma absoluta. Em vez disso, deve ser interpretado de maneira a permitir a responsabilização das plataformas mesmo sem ordem judicial, em casos graves, como incitação ao ódio ou à violência, desinformação em massa, pornografia infantil, crimes contra a mulher, racismo, homofobia e transfobia, propagação de atos antidemocráticos e conteúdos impulsionados com fins ilegais ou divulgados por redes de robôs.
A nova interpretação estabelece que as plataformas têm o dever de agir com rapidez e diligência para remover conteúdos sabidamente ilícitos. Se forem omissas, poderão ser responsabilizadas civilmente, mesmo sem a necessidade de uma decisão judicial que determine a retirada do conteúdo.
Além da interpretação progressiva do artigo 19, o STF determinou uma série de obrigações práticas para as plataformas digitais: criar canais acessíveis de denúncia, disponibilizar relatórios anuais de transparência, ter representação legal no Brasil com poderes para responder judicial e administrativamente, e atuar com diligência na moderação de publicações, especialmente em casos de circulação massiva de conteúdos ilícitos.
A decisão também modulou seus efeitos: valerá apenas para casos futuros, garantindo segurança jurídica e evitando surpresas retroativas.
O artigo 18 do Marco Civil permanece integralmente válido:
Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Esse dispositivo protege os provedores de conexão à internet, como operadoras de banda larga ou redes móveis, isentando-os de responsabilidade civil por conteúdos postados por terceiros. Ou seja, se alguém publica algo ilegal em uma rede social, o provedor de internet (a empresa que dá acesso à rede) não pode ser responsabilizado por isso.
O foco das decisões do STF (nos Temas 533 e 987) foi sobre os provedores de aplicações de internet, como redes sociais, mecanismos de busca, plataformas de vídeo, marketplaces etc. Isso inclui empresas como Google, Facebook, X (antigo Twitter), YouTube, TikTok, Instagram, Mercado Livre e outras plataformas onde os usuários publicam conteúdo.
Uma crítica recorrente à decisão do Supremo é a de que o STF teria usurpado a função legislativa, criando normas e deveres que caberiam ao Congresso Nacional. Afinal, é do Poder Legislativo a competência para elaborar leis, como dispõe o artigo 48 da Constituição Federal.
Entretanto, no vácuo deixado por uma política mais preocupada com “lacração” nas redes sociais, é o peso das togas que acaba sustentando a democracia. Se, por um lado, não podemos ignorar que vivemos tempos em que o Poder Judiciário tem ocupado espaços que, em tese, deveriam ser protagonizados pelo Poder Legislativo, por outro, é preciso reconhecer que a decisão do STF, que reinterpretou o artigo 19 do Marco Civil da Internet, é ao mesmo tempo necessária e legítima, porque há urgência em conter os danos provocados por discursos de ódio, fake news e ataques à democracia no ambiente digital, diante da omissão do Congresso.
A situação revela a dependência crônica do país em relação ao STF para resolver temas centrais da sociedade, mesmo quando esses temas exigiriam deliberação democrática, participação popular e legitimidade parlamentar.
Não nego a legitimidade da atuação do STF e, felizmente, temos uma Corte que decide e garante direitos. O que preocupa, porém, é a normalização do ativismo judicial como substituto da política legislativa. Não basta apenas fazer discursos inflamados no plenário contra decisões do Supremo; é preciso mudança de postura, compromisso com a função legislativa e, acima de tudo, atuação concreta em favor do povo — especialmente das populações mais vulneráveis.
Quando os parlamentares se omitem, seja por conveniência, por medo de desagradar seus eleitores ou por pura inércia, a toga se impõe como o último bastião da Constituição. Mas esse protagonismo constante do Judiciário, ainda que necessário diante da omissão política, não é saudável para a democracia.
É irônico que tantos políticos critiquem o chamado "ativismo judicial" do STF, enquanto a maioria deles se limita a ser mero "ativista de redes sociais", lacradores do TikTok ou do Instagram, mais interessados em gerar engajamento do que em legislar com responsabilidade.
A obsessão pela reeleição transforma muitos deles em personagens performáticos, distantes das questões estruturais do país, como educação, saúde, segurança pública e justiça social.
Estamos diante de um Congresso caricato, infantilizado, composto, em grande parte, por parlamentares despreparados ou desinteressados em cumprir o papel institucional que lhes cabe. É verdade, leitor, há uma minoria lúcida e comprometida com o interesse público, mas, infelizmente, ela não tem sido suficiente para reverter a mediocridade dominante.
O ativismo judicial, em diversos casos, é apenas uma consequência direta da ausência de um verdadeiro ativismo político no Congresso Nacional. Paradoxalmente, no entanto, muitos parlamentares têm sido extremamente ativos na defesa e ampliação dos próprios privilégios e na garantia das emendas parlamentares — sejam elas "secretas" ou não.
A Constituição de 1988 foi clara ao estabelecer a separação dos Poderes. Quando o Judiciário passa a "legislar por interpretação", ainda que movido pelas melhores intenções, corre o risco de enfraquecer a representatividade popular.
O STF é, sim, o guardião da Constituição, mas não pode tornar-se o único motor da transformação social. Ainda assim, diante de um Congresso omisso como o que temos hoje, é reconfortante contar com essa atuação do STF. Caso contrário, as populações vulneráveis estariam padecendo há muito mais tempo.
É profundamente preocupante quando a mais alta Corte do país precisa lembrar à República, aos seus cidadãos e representantes políticos, que a proteção da infância, da honra, da dignidade e da própria democracia não pode esperar. O Judiciário só avança porque a política recua. A omissão parlamentar abre espaço para o protagonismo judicial, e esse vazio democrático, inevitavelmente, cobra seu preço.
O STF não criou uma nova lei, nem substituiu o texto legal por outro. O que fez foi reinterpretar o artigo 19 do MCI, conforme a Constituição, diante de uma situação de omissão normativa e urgência social. O STF entendeu que aplicar o dispositivo de forma rígida, como antes, resultava em violação de direitos fundamentais e, também, dos direitos humanos, como a dignidade da pessoa humana, a honra, a igualdade e a proteção da infância.
Se o Congresso se omite, cabe ao Supremo Tribunal Federal atuar. A Constituição Federal estabelece que, quando o Congresso Nacional deixa de tomar as medidas necessárias para que uma norma constitucional tenha efeito prático, o STF pode intervir, se provocado. Essa possibilidade está prevista no artigo 102, inciso I, alínea “a”, combinado com o artigo 103, § 2º, da Constituição. Nesses casos, o Supremo pode julgar a chamada ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que tem como objetivo corrigir a omissão legislativa e garantir que os direitos e deveres previstos na Constituição sejam efetivamente cumpridos.
Essa atuação está amparada na função do STF como guardião da Constituição. Além disso, o próprio Tribunal fez um apelo explícito ao Congresso Nacional para que legisle sobre o tema e atualize o marco normativo, conforme previsto na Constituição Federal em seu artigo 103, § 2º:
“Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.”
“Apela-se ao Congresso Nacional para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais.” (Tema 987, STF)
Trata-se, portanto, não de ativismo judicial desenfreado, mas de um esforço de proteção constitucional frente à inércia do Legislativo.
A decisão do STF é, ao mesmo tempo, necessária e desconfortável. Necessária, porque não é possível tolerar a impunidade digital diante de crimes graves. Desconfortável, porque a normalização da judicialização da política enfraquece o debate democrático e transfere ao Judiciário uma carga que deveria ser compartilhada com o Parlamento.
Esse foi o cenário em que se inseriu a decisão histórica do STF ao declarar parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, diante da omissão do Congresso Nacional em regulamentar adequadamente a responsabilização das plataformas digitais frente à propagação de discursos de ódio, desinformação e ataques à democracia.
A reinterpretação do artigo 19 pelo STF marca uma nova etapa na regulação do ambiente digital brasileiro. Sem retirar direitos, o STF reafirmou a necessidade de diligência, responsabilidade e compromisso ético das plataformas com a democracia e a dignidade humana. Ao mesmo tempo, lançou um desafio ao Congresso Nacional, qual seja, sair da omissão e legislar com responsabilidade.
A decisão do STF reforça que a liberdade de expressão não pode servir de escudo para abusos e para o cometimento de crimes, e que as grandes plataformas não podem fingir neutralidade enquanto lucram com a viralização do ódio. A partir de agora, ficar em silêncio diante da mentira e da violência poderá custar caro, inclusive para as empresas. Que a decisão do STF nos sirva de alerta e que possamos, com responsabilidade e racionalidade, construir uma internet mais ética, mais democrática e mais comprometida com os direitos fundamentais e os direitos humanos.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 jun. 2025.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 27 jun. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987 – Incidente de Repercussão Geral nº 5160549. Decisão de 26 de junho de 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549. Acesso em: 27 jun. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 533 – Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 1.057.258/MG. Relator: Min. Luiz Fux. Julgado em: 26 jun. 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5217273. Acesso em: 27 jun. 2025.